09/07/2014

DESPEDIDA

Não foram 11 dias, 11 semanas, nem 11 meses. Foram mais de 11 anos de convivência com os bisavós do meu filho - a bisa Antônia e o biso Zé. Hoje, os dois não estão mais neste plano. Ela se foi sexta-feira; ele, há cinco meses. O tempo em que estiveram aqui fizeram uma grande diferença na vida dos familiares e até de quem não era da família: eu, por exemplo. Não tive o prazer de conviver com os meus avós. Os paternos moravam em outro estado e os conheci apenas por 30 dias, durante umas férias de janeiro, quando completei 15 anos. O meu avô materno faleceu quando minha mãe tinha pouco mais de 6 anos. Tive a honra de conhecer a minha avó materna, mas não por muito tempo, porque ela se foi quando eu tinha apenas 8 anos e as lembranças não são tão vivas.
Enfim, eu não sabia o que era compartilhar momentos intensos com vô ou vó até conhecer a dona Antônia e o seo Zé. Eles eram realmente muito especiais. Viveram juntos por mais de 60 anos e tive o privilégio de acompanhar pelo menos uma década. E que década!!!
Eu tinha uns 20 e poucos anos quando os conheci. Idade propícia pra balada, boemia, e seja lá o que for o nome que queiram dar para um período em que, via de regra, a ordem é enfiar o pé na jaca. Entretanto, se me perguntassem, naquele período, o que eu mais gostava de fazer para me divertir aos sábados à noite, a resposta seria imediata: jogar buraco na casa de dois velhinhos. Jogar, não, perder e de lavada!!!
Antes do carteado começar, havia um ritual. Vó Antônia assistia à novela das 8 e depois ao Big “Bródi” – era assim mesmo que ela falava; a simplicidade e o jeitinho soavam como música aos nossos ouvidos. Também eram hilários os comentários sobre a indumentária do povo da televisão: “Nossa, que roupa psicodélica” – a vó dizia com um certo ar de indignação que depois se transformava num riso frouxo, gostoso, embalado pela frase derradeira “eu me adivirto, eu me adivirto”. Quem se divertia era a gente, rsrs.
Quando começava o Zorra Total, era chegada a hora de desligar a TV e o vô se apressava para buscar a mesa de madeira dobrável. Depois de montá-la, estendia uma toalha e a deixava, impecavelmente, esticada. Detalhe: a toalha condizia com o mote da brincadeira, pois nela estavam estampadas algumas cartas de baralho. Vocês não estão entendendo: o lance, minha gente, era profissional.
Antes de começar a primeira partida, algumas regras eram estabelecidas ou relembradas para não haver “disse-me-disse” durante a jogatina. Ali, ninguém tinha tempo a perder. Os velhinhos sentavam naquela mesa com apenas um objetivo: GANHAR!!! E ganhar bonito!!!
Começava a partida: compras do monte, descartes, canastras com sete cartas limpíssimas sendo baixadas – deles, é claro –, batida direto, sem descarte, morto na mão e canastra real. A estratégia deles funcionava exatamente nesta ordem. Era sorte – só compravam as melhores cartas, sempre aquelas que a gente precisava – com um misto de esperteza e, pelo menos, uns 50 anos de experiência. Eles se entendiam só pelo olhar. Era pura covardia. Era uma surra atrás da outra.
Ahhhhh, mas havia dias em que a sorte deles virava pro nosso lado e aí também não tinha pra ninguém. E exatamente quando os bons ventos sopravam na direção oposta é que o jogo ficava engraçado. Quando começavam a perder, os velhinhos quebravam o pau. Sem paciência, a vó dizia: “Zé, ôôô Zé, “prestenção” no jogo, Zé. Cê viu a carta que cê descartô? Não é “ansim”, Zé. Cê tá dando o jogo pra eles”. O vô ficava na defensiva: “Carrrma, Tunica, carrrma”.
Pausa para o café, ou melhor, para o chá. Todo mundo acha que qualquer um faz chá, né? Afinal, não há nada demais em pegar um punhado de mate e jogar numa água quente, certo? Errado. Aquele chá da vó Antônia era “O chá”. Era diferente. Saboroso. No ponto certo. Acompanhando ele vinham as bolachinhas, a manteiguinha, os bolos. Era tudo maravilhoso.
Depois da comilança, pausa para o xixi. Era nessa hora que o seo Zé e a dona Antônia aproveitavam a ausência dos oponentes para cochichar. Enquanto sussurravam as táticas para virar o jogo, eu e meu parceiro ríamos do outro lado. Então, voltávamos sérios para a mesa como se vencer fosse ponto de honra, mas, na verdade, a gente só queria estar ali, pertinho deles, se divertindo, dando e recebendo amor.
Era dada a largada da segunda rodada do carteado madrugada adentro. E não é que os danados viravam mesmo o jogo? Na hora de contar os pontos e, principalmente, na hora de anotá-los, seo Zé não tirava o olho do caderninho para se certificar de que estava tudo nos conformes. Serem passados para trás? De forma alguma. Quem fazia isso com a gente eram eles; praticamente, uma prerrogativa, rsrs.
Ingênua, deixava as cartas à mostra. Este era o motivo do meu parceiro de jogo brigar comigo: “Li, fica esperta, levanta essas cartas, meu”. Afinal, ele, melhor do que ninguém, sabia com quem estava lidando. Sabia que os velhinhos não davam ponto sem nó e faziam de tudo para ganhar.
No fim, eles ganhavam mesmo. Ganhavam, na verdade, só o jogo. Quem saia realmente ganhando de lá éramos eu e o parceiro. Voltávamos para casa comentando cada flash do jogo e rachando o bico dos velhinhos durante o percurso inteiro. A noitada rendia assunto no domingo e na semana inteira, mas nem sempre a gente conseguia repetir a dose no fim de semana seguinte. Motivo: os outros netos, netas e agregados também marcavam presença no concorrido cassino improvisado dos velhinhos.
Durante a semana, eu também aparecia por lá. Chegava morta de fome e, óbvio, tinha ido para o lugar certo. Meio envergonhada, não queria dar trabalho pra vó, mas não resistia e dizia “sim” para a pergunta básica, logo que adentrava a casinha deles: “Ô Lilia – era assim mesmo que ela me chamava, sem o “n” no final –, “qué” uma “jantinha”, “qué”? Tem um arrozinho, um feijãozinho, uma couvinha, eu posso fazer um ovinho, qué?”.
Tudo “inho” porque o que mais tinha ali era carinho. Era delicioso. No vocabulário gastronômico deles, eu adorava ouvir o vô dizer “macarrom”. Depois que a gente jantava, dava um tempinho lá e não podia ir embora sem tomar o famoso chá. Bem coisa de vó mesmo. Das poucas coisas que me lembro da minha avó materna era o chá dela, que fazia pra gente antes de ir embora. Tomar o chá da vó Antônia era resgatar um passado distante, quase perdido nas lembranças da mais tenra idade.
Já o seo Zé era uma grande figura, um tremendo contador de histórias e um piadista de mão cheia. Toda festança de família, eu pedia para ele repetir sempre a mesma piada, que, aliás, já havia perdido a graça, mas jamais o encanto da interpretação dele. A piada era sobre um português que havia comprado uma coruja no lugar de um papagaio. Ao final, perguntavam para o gajo se o bicho falava. A reposta, dita com maestria pelo seo Zé, era: “Fala num fala, mas presta uma atennnnçããããoooo!!!”. E ele mesmo caia na gargalhada e eu ia no vácuo da risada dele. O vô era um incansável trabalhador e mesmo com a idade avançada estava sempre consertando alguma coisa. Não parava. Até do telhado caiu. E depois contava os detalhes da queda como um garoto sapeca que conta alguma travessura.
Dona Antônia e o seo Zé foram, definitivamente, os avós que eu não tive. Foram também um exemplo de união no melhor estilo dos primeiros minutos do filme animado “UP – Altas Aventuras”. Difere apenas na ordem cronológica dos acontecimentos, pois foi ela que ficou ao lado dele no leito do hospital até a sua morte. Cumprida a missão, foi pra pertinho dele cinco meses depois.
Foi triste a despedida de sexta. Fiquei muito sentida porque, há umas duas semanas, havia perguntado para a nora dela quando ela faria aniversário, porque queria lhe fazer uma surpresa. Mas, de repente, veio a notícia de que ela havia sido hospitalizada e estava entubada. Então, cheguei ao velório e desabei, porque não tinha dado tempo de fazer o que eu queria.
Eu me culpei e senti remorso por querer esperar por uma data. Por ter trabalhado e me ocupado demais nos últimos tempos e não ter ido visitá-la antes. Taí a prova de que o que a gente tem a dizer tem de ser dito hoje, porque amanhã pode não dar mais tempo. A outra é a de que ocupação demais nos tira o melhor da vida, que é estar ao lado de quem amamos. Triste aprender na dor, mas a gente só aprende e passa dar valor à vida e ao convívio com as pessoas quando se perde algo precioso.
Ficam agora as lembranças arraigadas na minha memória e no meu coração.
Vó e vô, muito, muito, muito obrigada por tudo. Vão treinando carteado aí no andar de cima, porque eu vou continuar treinando aqui embaixo. Afinal de contas, não existe partida sem revanche.
Até breve.
Com carinho,
Lilian, a neta agregada.

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